Um dia minha mãe entrou no meu quarto e levou um susto: eu havia pintado toda a parede com tinta guache vermelha e preta. Sobre os armários muitos quadros e pôsteres de todos os ídolos. No meu aniversário de 10 anos enlouqueci meu pai até ele comprar uma cama com o brasão. Eu vivia assim, fantasiado de radical islâmico.
A idade não me trouxe juízo. Com dinheiro no bolso virei um andarilho. Onde tinha uma TV ligada passando jogo, lá estava eu. Bares, restaurantes, casa do vizinho, qualquer lugar servia. Já escutei centenas de jogos com um radinho colado ao pé do ouvido. Nada era motivo para perder um jogo. Já peguei chuva, sol, doenças. Comprar a camisa virou tradição. Todo ano ficava angustiado até saber que o novo modelo havia chegado. Não importava o preço, bastava dividir em 10 meses e diminuir o leite em casa.
Fui duas vezes ao Maracanã, em ambas não tinha grana e nem tempo, mas fui. Uma vez sai de São Paulo sozinho na madrugada e assisti um Flamengo e Vasco pelo Carioca. Lembro também da oportunidade em que a equipe comandada por Júnior Baiano veio até Teresina. Furei o bloqueio da segurança e tirei fotos com os jogadores. Na saída subi na grade para acenar ao time que ia embora. Torcer pra mim era quase uma profissão. Quando minha filha nasceu, logo comecei o trabalho de flamenguistização da criança. Como um ritual diário, ela beijava a camisa, escutava o hino e dormia ao som de cantigas entoadas pela torcida.
Até que um dia o nosso goleiro, capitão e melhor jogador do time, foi acusado de uma atrocidade. Não algo qualquer, como briga com baderneiros. Estamos falando na morte e esquartejamento da mãe do próprio filho. Por alguns dias refleti profundamente o impacto daquilo no clube. Aos poucos percebi que o clube estava intacto. Perdeu algum dinheiro, mas logo apareceu outro atleta para substituí-lo à altura. Escolheram um novo capitão e seguiu-se a vida.
Torcedores mais sensatos aproveitaram a oportunidade para fazer um histórico dos problemas enfrentados pelo Flamengo ao longo das últimas duas décadas. Foi então que caiu a ficha. Eu havia mudado. Não conseguia mais torcer como antes. Perdi a motivação de sair de casa para assistir aos jogos. Não tinha mais coragem de vestir o uniforme do time. Os amigos próximos logo começaram a dizer que isso era algo passageiro, que tudo seria como antes, o Flamengo era maior do que tudo e que todos.
Pois bem, digo pra vocês que não é. O Flamengo não está cima de tudo!
Sabe por que resolvi fazer esse desabafo hoje? Não é pelo melancólico empate de ontem, não é pelo rebaixamento iminente, não é pela imundice que estão fazendo com o Zico, não é. Resolvi escrever sobre esse meu "conflito existencial", como dizem alguns, por causa do Andrade.
O que a Diretoria do Flamengo fez (e está fazendo) com esse homem é uma falta de respeito sem precedentes. Um clube que se vangloria por ter a maior torcida do Brasil não tem o direito de fazer o que fizeram. Justamente por sua grandiosidade, o Flamengo deveria ser exemplo de moral, ética e respeito. A torcida e os ídolos deveriam ser tratados com afeto e dignidade.
Hoje assisti uma reportagem no Esporte Espetacular, da Rede Globo. Fiquei absolutamente emocionado com a humildade, o caráter e a virtuosidade do Andrade. Ele pegou um clube em ano eleitoral, com 17 anos sem um título nacional, jogadores problemáticos, crise financeira e total falta de estrutura. Tirou o time das últimas posições na tabela e consegui ser campeão brasileiro. Foi escolhido melhor técnico por profissionais da área, classificou o clube pra fase final da Libertadores e manteve aproveitamento superior a 70%. Mas nada disso adiantou.
Por um interesse político de uma mulher que prometeu "um novo Flamengo", ele foi demitido de forma humilhante.
Sabe o que isso trouxe? Ninguém mais quer ir pro Flamengo. Basta notar a dificuldade em contratar novas peças. O clube foi recusado por Felipão, Parreira, Carpeggiani. Ninguém quer ser o próximo "Andrade". Estão certos, afinal, quem de nós iria para uma empresa que premia títulos com ultraje. O que se sucedeu à demissão? O time desceu ladeira abaixo. Perdemos tudo, de pontos na classificação ao respeito próprio. E não devemos nos enganar, fundo do poço não é a segundona. Fundo do poço é o local que o Flamengo está hoje: a falência moral.
Andrade é o símbolo de tudo isso.
Assista à reportagem: